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05 ⁕ o medo do corpo

a presença do corpo nas narrativas de horror

o corpo ⁕

o corpo é, sempre foi, e sempre será, figura central em narrativas de horror. Ele é o objeto que nos concede a vida e a morte e, no corpo, estamos sujeitos às emoções: medo, dor, angústia, nojo, tensão, terror. Nesse corpo frágil e inconsistente que nos envelopa, estamos vulneráveis a ameaças externas. É uma prisão, e mal temos controle sobre ele, somos alvos ambulantes esperando a morte. Nada mais narrativa de horror do que mirar naquilo que nos é essencial: nós mesmos.

vampiros, zumbis, canibais, fantasmas, monstros, lobisomens, bruxas. Todos esses personagens clássicos de histórias de horror possuem algo em comum: as histórias falam sobre seus corpos. Corpos que invadem outros corpos, corpos que morrem e voltam à vida, corpos ausentes, corpos que se transformam, corpos que são perseguidos e queimados. O horror tem uma obsessão pelo corpo, e não é só no body horror. Posso citar Mary Shelley, Clive Barker, David Cronenberg, Maria Fernanda Ampuero, Verena Cavalcante, e muito mais, autorias de diversas épocas, locais e perfis cuja obra permeia a exploração do corpo humano como peça fundamental para a fabricação horror.

por que?

bom, se narrativas de horror e terror refletem os medos da sociedade da época em que foram escritas, então o corpo sempre foi um território fértil de aflições.

corpo é território ⁕

entra império, sai império, o controle dos corpos da população fez parte da história da humanidade desde seus primórdios. A Igreja é um exemplo bem óbvio disso, controlando comportamentos, desejos, vestimentas, rotinas e (veja bem) medos. Corpo é poder, é domínio, é mercadoria. Quanto mais corpos controlados, maior é a força de um império. Passando pela inquisição e chegando aos tempos atuais, a igreja (não só a católica) sempre perseguiu pessoas por conta dos seus corpos, e os corpos marginais invariavelmente ficam na ponta da lança, sejam eles de mulheres, pessoas pretas, pessoas com deficiência, pessoas trans ou lgbtqia+ no geral. No mundo capitalista, nossos corpos são mercadoria, são descarte, moeda de troca, de abate, são negociáveis e descartáveis, para governos e empresas.

histórias de terror serviram por muito tempo para manter a influência cultural de muitos impérios. No período colonial, causos de assombração eram utilizados pela sociedade canavieira nordestina para manter o poder do patriarcado nos engenhos (falei disso nesse texto aqui). Histórias de bruxas demonizavam mulheres. Histórias de demônios mantinham cristãos sob curta rédea. Monstros contribuíam para o estigma de deficiências. Histórias de zumbi e vampiros faziam sua parte na exotificação de estrangeiros, imigrantes e pessoas queer. Canibalismo, monstros da floresta e das montanhas, tudo planejado para criar uma imagem assustadora sobre a natureza e povos indígenas. E por aí vai.

como a possibilidade de contar histórias não está mais concentrada apenas nos detentores de poder, hoje em dia narrativas são escritas por pessoas que antes eram vilanizadas, levando o horror e terror a uma nova perspectiva.

então eu volto aos vampiros, zumbis, canibais, fantasmas, monstros, lobisomens e bruxas, porque são esses corpos marginais e monstruosos que habitam as histórias de terror. Contamos essas histórias para expressar, processar, compartilhar e entender nossas aflições. Assim, se nosso corpo é território, e ele foi colonizado, que tomemos o controle dele de volta.

corpo é política ⁕

o corpo ausente é o maior combustível para histórias de terror. Histórias de fantasmas, de desaparecimentos, de abduções, de casas mal assombradas: todas essas falam sobre pessoas que foram embora e só deixaram seus ecos. O luto é um sentimento terrível que todo mundo teme, mas pelo qual todos nós passamos ou iremos passar. Ele assusta e machuca. O corpo ausente cria uma fenda na nossa existência. De repente, uma pessoa que fazia parte da nossa vida não exite mais, e o que fazer para lidar com essa lacuna? Se funerais servem para ajudar o cérebro a processar tudo (vemos o corpo sendo enterrado, nos despedimos, nos rodeamos de parentes), o que acontece quando não há corpo? E quando o fantasma de um corpo já enterrado volta para te assombrar?

pior: nosso continente foi aterrorizado com ditaduras que sumiram com os corpos e colocaram populações inteiras em um estado de luto suspenso. Antes, os colonizadores dizimaram povos originários e trouxeram populações escravizadas do outro lado do oceano, essas pessoas perderam sua cultura, seus ritos, não puderam se despedir de seus parentes, não puderam lidar com os seus corpos. Foi um luto massivo imposto a milhões de pessoas, cujas consequências e traumas duram até hoje. Como lidar com todo esse horror?

não é à toa que a América latina tem uma produção de literatura de horror tão potente, é um continente onde muitos corpos foram enterrados, e onde muitos corpos estão desaparecidos e desaparecem todos os dias. Habitamos um território feito de luto. E num lugar onde tanta gente é explorada e perseguida, é nos corpos dissidentes que se projetam as vozes mais potentes.

enfim, tudo isso para dizer que leiam todo tipo de livro, leiam horror, mas leiam principalmente as novas vozes: mulheres, latinos, nordestinos, pessoas racializadas, pessoas queer. Literatura é política, literatura de horror também é. Quais corpos políticos você quer dar atenção?

recomendações ⁕⁕

⁕ até o próximo risco!

⁕ oi! sou lucas santana — escritore, biólogue e paraibane vivendo em recife. exploro minhas vivências como pessoa queer, não-binária e moradora de uma cidade nordestina cortada por manguezais para escrever sobre o horror e o fantástico que atravessam meu cotidiano. gosto de histórias de investigação, de assombração, de revolta e de vingança. escrevi os livros o silêncio do mangue (naci), a trama da morte e fruto podre. publiquei contos nas revistas suprassuma (suma), pulpa (escambau) e the dark, e nas antologias lgbterror (diário macabro) e rocket pages (rocket). de forma independente, publiquei o romance ilhados e o conto o parque. Vocês podem me encontrar no instagram, bluesky, tiktok ou pedalando pelas ruas do centro de recife.