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01 ⁕ açúcar e assombrações

o papel do fantasma na sociedade canavieira do nordeste colonial

o sobrenatural como ferramenta do patriarcado ⁕

não temos muito medo de fantasmas. Não no Brasil. Muito menos aqui no nordeste. Aqueles filmes norte-americanos de famílias se mudando para casas mal-assombradas e correndo dali o mais rápido possível? Besteira. Convivemos diariamente com os mortos, espíritos, santos, assombrações, visagens. Não temos para onde fugir. A crença no sobrenatural é entranhada na nossa cultura. Vivemos sobre esqueletos e somos atraídos por mágicas, rituais, cerimônias, mistérios, adivinhações, previsões. Afinal, vivemos num país onde os fantasmas foram utilizados como uma ferramenta de colonização.

a civilização do açúcar, que devastou o Nordeste entre os séculos XVI e XVIII e prosperou principalmente em Pernambuco, foi um grande culto aos mortos. Os povos nativos foram mortos e expulsos de suas terras, a mata atlântica foi dizimada para a monocultura de cana, os povos escravizados foram trazidos para manterem as grandes propriedades de engenho e a casa-grande.

a casa-grande é o maior símbolo do ciclo do açúcar. Tanto que até hoje perduram em nomes de ruas, de prédios e até de motéis em Recife. Os engenhos preservados, que não foram engolidos pela cidade, são museus, hotéis, casas de veraneio de famílias aristocráticas. Sobre essas famílias: elas são extremamente endogâmicas. É preciso, a todo custo, manter a riqueza entre eles. Não é à toa que as terras são dos mesmos donos há séculos. Aí está a primeira função dos fantasmas.

esses antepassados enterravam seus mortos na capela do engenho, ao lado da casa-grande. Dessa forma, mesmo após a morte os familiares permaneciam todos dentro do mesmo perímetro.

assim, os mortos estavam sempre de olho. Do além, fiscalizavam, julgavam, vigiavam a casa-grande, eram uma figura mística e regulatória das amarras do patriarcalismo. Mesmo depois de morto, a foto do senhor do engenho perdurava no altar, velado e cultuado ao lado dos santos (na hierarquia colonial era assim: santos > mortos > vivos), e mesmo enterrado o homem comandava o engenho, evitando a dispersão familiar. O fantasma, então, não tinha apenas função do coerção, mas também de coesão.

as mulheres, naquela época, morriam muito mais do que os homens. Obrigadas a casarem ainda jovens, crianças e adolescentes morriam em partos, de ferimentos causados pelo abuso dos maridos, de doenças simples que a medicina ainda não tinha encontrado soluções. As rezas, os santos, os fantasmas dos antepassados eram a única companhia das moribundas. Funerais suntuosos e pomposos garantiam a glória no além-vida. Bebês prematuros morriam aos montes, mas pelo menos virariam anjinhos.

o sobrenatural era, então, também, um acalanto, uma ferramenta para manter a estabilidade social e cultural. Nos horrores daquela época, a morte era uma promessa de descanso. Sem esse misticismo, sem as almas que anunciavam uma vida após a morte, a dura vida no engenho se colapsaria. Quanto mais difícil a vida é, mais desejosos nós somos por uma utopia. Com os fantasmas vivendo em paz debaixo dos alpendres, das bananeiras, jaqueiras e mangueiras (todas essas espécies invasoras, diga-se de passagem), os vivos se mantinham calmos e controlados. As mulheres brancas não choravam pelas dezenas de filhos perdidos. Os negros escravizados se consolavam com a esperança de uma vida tranquila após a morte. O senhor de engenho honrava a fotografia da esposa morta, enquanto se casava com a próxima. E a próxima. E a próxima.

era preciso que os fantasmas convivessem dentro da casa. Retratos, velas, altares, tumbas, tudo isso era necessário para manter as visagens vivas dentro daquelas construções cheias de sombras, cômodos vazios e móveis escuros. Assim se mantinha a ordem e a obediência. A criança traquina era domada pelo espírito da avó que observava tudo da cadeira de balanço. A moça rebelde era repreendida pelo espírito da mãe morta que vigiava sua cama. O senhor de engenho, de nariz empinado no alto do seu cavalo, era apoiado pelo poder dos seus ancestrais, que o incentivavam a perpetuar as posses.

mas nem toda assombração era boa. Entretanto, todas tinham propósito.

a plantação extensiva da cana-de-açúcar exigiu a devastação da mata nativa. Era preciso desprezar tudo que vinha daquela terra. Por isso até hoje não sabemos os nomes dos frutos nativos das matas que nos cercam. Não interessa ao mercado. A cana é mais importante. O boi. A exportação. Nos fragmentos de mata que sobraram, reservou-se o oculto. As bestas. Os mitos provenientes de cosmologia indígena. De divindades africanas. O demônio na sombra da árvore, ameaçando a santidade do solo do engenho. Era preciso ficar nos limites da casa-grande para se manter protegido. Era preciso orar e se unir aos fantasmas para se blindar.

o colapso do açúcar e os novos fantasmas ⁕

a modernidade trouxe luzes mais claras e mais fortes, a migração para as cidades, e as sombras dentro da casa-grande ficaram mais fracas, assim os fantasmas foram debandando, procurando locais mais sombrios. Ruínas, poços, cemitérios, terrenos baldios, capelas invadidas por mato, manguezais.

em Recife, os fantasmas trazidos do engenho amaldiçoaram os casarões e os sobrados. Os ricos enterraram suas botijas, os aristocratas emparedaram suas filhas para que elas não se perdessem na devassidão da cidade grande. De paredes tão próximas, com uma população apinhada num espaço tão pequeno, todos escutavam os gritos, os gemidos, os espancamentos e os pedidos de socorro entre o badalar dos sinos das igrejas e o andar das carruagens na lama das vielas. A cidade rangia numa melodia de horror. Os senhores do engenho não mais conseguiam manter os segredos da família entre quatro paredes e sob os olhares aguçados de seus mortos. E nos engenhos abandonados, espíritos de velhas senhoras vagavam na beira do açude à procura da família que mudou-se para a cidade. As senzalas vazias eram lembretes das torturas, e o barulho das correntes ressoava vindo do além.

por isso Recife é a cidade mais assombrada do Brasil.

criaram fantasmas demais. E agora eles não tem mais para onde ir.

para escrever esse texto, usei como referência o livro Assombrações e coisas do além, de Fátima Quintas, e Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre.

livro gratuito ⁕⁕

já que estou falando de engenhos e do nordeste, meu conto Fruto podre está gratuito só hoje (03/10) na amazon! Na história, quando a família dela perde tudo, uma moça é obrigada a trabalhar para uma família de ingleses que compra um engenho abandonado no interior da Paraíba. Lá, ela descobre que as histórias de terror que contam sobre aquelas terras não são apenas contos de fantasmas para assustar menininhas. É, como chamam, um folk horror (horror rural/folclórico), baseado em histórias que ouvi na minha infância — ruínas, loucura e maldições familiares rondam os canaviais.

desenvolvi esse conto durante um curso sobre terror latinoamericano promovido pela Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades (APPH), ministrado por Andre Araujo. Esse curso está, inclusive, com inscrições abertas para mais uma edição: apph.com.br. Recomendo demais.

⁕ até o próximo risco!