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04 ⁕ dias de assombro

reflexões sobre o terror

encontro assombrado ⁕

domingo passado (27/10), foi o Encontro Assombrado, evento anual de halloween que organizo pela segunda vez com Apolo Andrade, onde nos sentamos com escritores de terror pernambucanos para falar sobre, bem, terror. Dessa vez, o tema da nossa conversa foi "O terror nos tempos atuais: tradição nordestina e representatividade na literatura" e convidamos os autores Vitor Valeffort e Lua Costa para falar sobre o assunto. Apolo mediou a conversa e, como sempre, fez perguntas profundas que me deixaram pensando por um tempão mesmo após o encontro. Como forma de processar essas perguntas e trazer a conversa para quem não participou do evento, resolvi trazer para cá minhas reflexões.

a origem do vilão ⁕

meu primeiro contato com histórias de terror foi na infância. Filho caçula e também o mais novo entre um monte de primos traquinas, sobrava para mim as brincadeiras dos mais velhos. No sítio em Santa Luzia, no interior da Paraíba, corríamos entre os galhos secos da caatinga procurando botijas escondidas e fugindo de cobras. Na volta para casa, sobre a carroceria da pampa do meu tio, no completo breu da noite sertaneja, me contavam histórias de assombrações que apareciam na beira da estrada, prontas para emboscarem motoristas desavisados. Eu fechava os olhos, com medo de vê-las, mas naquela escuridão, e com uma imaginação fértil, não fazia muita diferença ficar de olhos abertos ou fechados.

já em Areia, cidade do brejo paraibano onde eu ia visitar os parentes da minha mãe, eu escutava histórias dos espíritos da serra, que rondavam a estrada com suas centenas de curvas perigosas, velando seus locais de morte. Repleta de engenhos, úmida, fria e coberta por neblina, a cidade é carregada de histórias assombrosas, e eu lembro de andar apressado na calçada do cemitério quando estava indo para a casa da minha tia, de ver velórios nas casas de portas e janelas escancaradas, de ver vultos nos casarões abandonados. Eu morria de medo de Areia, para mim era uma cidade de mortos e fantasmas.

enquanto isso, na televisão dos anos 90, crimes televisionados ao vivo, linha direta aterrorizando crianças pelo Brasil, matérias sobre casos paranormais, sessões de descarrego, e eu em casa com medo de viver entre aqueles horrores. Vivi com medo dessas coisas por muito tempo. Foi no início da juventude, estimulado por amigos que eram obcecados por filmes de terror, que comecei a encarar meus medos.

só depois, quando comecei a entender o mundo, depois de ter visto muita coisa, percebi que havia coisas muito mais assustadoras do que aquelas histórias que me assombravam. E mais tarde compreendi que aquelas histórias — os causos, as lendas, as historinhas, os filmes — usavam o absurdo para falar de outras coisas. Não tinha para que temer, então. As histórias de terror serviam para que eu acessasse o medo de forma segura.

morar numa cidade assombrada ⁕

se em Areia, na paraíba, o terror fez parte do imaginário da minha infância, Recife compõe os cenários das minhas histórias de terror atuais. Me mudei para cá em 2018, vindo de João Pessoa, e essa mudança de cenário — bem brusca, apesar da proximidade — teve um impacto em mim. Primeiro, estético: prédios altos e velhos, ruas estreitas, muito trânsito, muita gente, muito abandono, buracos, esgoto, canais, prédios históricos em ruínas, prédios históricos enormes, muita história, e o rio Capibaribe, imponente, cortando tudo isso, pontuado por fragmentos de manguezal no meio da cidade. Depois, social: a violência, a pobreza extrema, as comunidades de palafita na beira do rio, os morros, as chuvas, as enchentes destruidoras. Nada disso eu tinha vivido em João Pessoa.

no meio de tudo isso, uma vida cultural e noturna muito agitada. É uma cidade viva no meio de ruínas, como se as pessoas fossem assombrações tentando sobreviver na lama. Dizem que é a cidade mais assombrada do país, e a quantidade de histórias de assombração que vivem no imaginário recifense prova isso. Como falei no texto 01 dessa newsletter, os fantasmas foram importantes para a colonização do nordeste, e Pernambuco, sendo uma potência, concentrou a maior parte desse espíritos. Quando a sociedade do açúcar começou a decair e a população que vivia entre os canaviais migrou para os centros urbanos, as histórias de terror do campo vieram para Recife, a maior metrópole da região. Uma cidade fundada sobre território invadido, mangue aterrado, sobre corpos de indígenas e de pessoas escravizadas, de sobrados e casarões que testemunharam horrores indescritíveis.

nesses seis anos que moro aqui, vi a história sendo apagada. Prédios novos, altos e cheios de vidro, erguendo-se sobre casas antigas. O abandono programado, para que tudo seja esquecido e depois limpo. É um passado do qual não devemos nos orgulhar, mas que precisamos lembrar: daí a importância das histórias de terror. Pois elas lembram que os mortos nunca vão embora. Os fantasmas permanecerão para sempre aqui.

o terror nos tempos atuais ⁕

histórias de assombração falam de traumas de uma sociedade em determinado período de tempo. As lendas antigas pernambucanas (a emparedada da rua nova, a encanta moça, a menina sem nome, a perna cabeluda) tratam de temáticas que, naquela época, não se falava de forma direta, apenas com alegorias e metáforas (feminicídio, pessoas escravizadas foragidas, intolerância religiosa, ditadura). Hoje em dia, vejo o terror como um meio para desnaturalizar a violência. O horror é banalizado na sociedade — afinal, a violência é uma ferramenta de controle social do capitalismo — e vemos diariamente, em todos os meios de comunicação, relatos de crimes horríveis. Somos bombardeados com uma quantidade tão grande de histórias de terror reais, que passamos por um processo de dessensibilização: não nos impacta mais. E se impactasse, como viveríamos num mundo tão cruel? Se nos impactasse, talvez não aceitaríamos tão facilmente viver em um lugar que nos violenta tanto.

crimes contra mulheres, contra pessoas racializadas, contra LGBTQIA+, contra PCDs, contra pobres, contra o meio ambiente. Tudo isso é naturalizado, é normal. No horror, a partir da extrapolação da realidade, do exagero, do sobrenatural, a gente desnaturaliza isso. Se um homofóbico matando pessoas numa cidade não choca mais, talvez uma série de crimes sobrenaturais que resulta em pessoas decepadas pela cidade sem nenhuma explicação plausível talvez choque. Se um grupo de milionários se juntando para foder a população não revolte mais ninguém, uma seita secreta com rituais de feitiçaria para manipular massas talvez assuste.

corpos em luto ⁕

outra pergunta bem interessante que Apolo fez para a gente no Encontro Assombrado foi sobre o significado do corpo e do luto nas obras da gente. Aqui tem tanto assunto para esmiuçar que vou deixar para outra edição do risco. Fica a promessa.

o mercado ⁕

possivelmente a pergunta mais assustadora do evento foi sobre o mercado editorial de terror no brasil e no nordeste. Falamos muito sobre o assunto — e não vem ao caso discorrer sobre isso aqui —, mas acho que vale a pena falar sobre como é difícil para nordestinos furarem a bolha.

primeiro, a nacional. Editoras, agências, eventos, tudo é muito concentrado no sudeste, e há pouco interesse das empresas em investir em quem está mais longe, pois isso acarreta em mais gastos (como de transporte, por exemplo). Furar a bolha regional é ainda mais difícil. Aqui, estamos acostumados a ler coisas que vem de fora, e, sem tantos eventos, não temos muitas oportunidades para nos aproximar de leitores e escritores locais. Produzir o Encontro Assombrado é uma tentativa de, aos poucos, reverter isso (e me rendeu aproximação com leitores de Recife!), e fazer com que as pessoas conheçam mais autorias nordestinas que não sejam aqueles nomes de grande peso (as exceções, que furaram a bolha depois de muito esforço). Espero que possamos ampliar isso no futuro.

livro gratuito ⁕⁕

e já que é halloween, para entrar no espírito de comemoração deixei gratuito A trama da morte, meu livro de horror/fantasia urbana que acompanha uma drag queen que caça espíritos no centro de recife. Vocês podem baixar gratuitamente aqui, de graça só hoje (31/10).

⁕ até o próximo risco!

⁕ oi! sou lucas santana — escritor, biólogo e paraibano vivendo em recife. exploro minhas vivências como pessoa queer, não-binária e moradora de uma cidade nordestina cortada por manguezais para escrever sobre o horror e o fantástico que atravessam meu cotidiano. gosto de histórias de investigação, de assombração, de revolta e de vingança. escrevi os livros o silêncio do mangue (naci), a trama da morte e fruto podre (corvus). publiquei contos nas revistas suprassuma (suma), pulpa (escambau) e the dark, e nas antologias lgbterror (diário macabro) e rocket pages (rocket). de forma independente, publiquei o romance ilhados e o conto o parque. Vocês podem me encontrar no instagram, bluesky, tiktok ou pedalando pelas ruas do centro de recife.