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10 ✷ a xenofobia contra nordestinos em o agente secreto

uma pequena análise sobre o novo filme de Kleber Mendonça Filho

esse texto é uma pequena análise do filme O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho e, apesar de não ter spoilers explícitos, cito referências e cenas sem contexto, então sugiro assistir o filme antes de continuar.

o subtexto ✷

O Agente Secreto é o filme mais importante produzido no brasil nos últimos tempos. Ele é tão rico em detalhes e com camadas tão profundas que eu precisava falar sobre ele, fiz anotações enquanto assistia, e precisei de horas refletindo sobre tudo que tinha visto e sentido. Postei uma resenha do filme nas redes sociais, mas ainda precisava falar mais. Aqui, não vou falar de atuações, de montagem ou coisas técnicas de cinema. Sou escritore, e a primeira coisa que eu reparo em filmes é no subtexto. Sempre me pergunto: o que o diretor queria falar com isso? A resposta que eu encontrei após pensar muito sobre O Agente Secreto foi que é um filme sobre o ódio contra nordestinos. E a recepção de uma parte do público reforça isso.

A minha tese é: paulistas e cariocas (e sudestinos no geral) não gostarem de O Agente Secreto é um sintoma da xenofobia estrutural que discrima o Nordeste desde o início do século XX. Senta aí que vou te explicar o porquê.

o ódio contra nordestinos ✷

Primeiro, eu queria repetir (porque, lógico, muita gente não entendeu): eu NÃO estou dizendo que quem não gostou é xenofóbico. Estou dizendo que não gostar é um sintoma de xenofobia estrutural. Inclusive muita gente não captou que o filme é sobre isso. Ao longo desse texto, vou explicar essa afirmação.

Vamos lá. No filme, acompanhamos o personagem de Wagner Moura, um professor universitário que está fugindo de pessoas que querem matá-lo. De início, não entendemos o motivo. A cena em que o personagem (vilão) ligado à Eletrobrás visita a universidade é a chave para entender o filme. O sucateamento do Nordeste foi um projeto político que vem lá da República Velha, das oligarquias sudestinas (lembram da política do café com leite, quando todos os presidentes do país vinham ou de Minas Gerais ou de São Paulo?). Esse projeto político visava manter o poder no Sudeste e ia desde o sucateamento de infraestruturas, saque, assassinatos, à criação do estigma contra o povo nordestino: criaram a imagem preconceituosa de que todo nordestino era faminto, miserável, burro, preguiçoso, feio, doente. Inferior. Estereótipos que persistem até hoje. Basta ter ano eleitoral que os saudosos do café com leite voltam à tona.

No início do século XX até se proibia a migração de quem fugia da fome (fome esta causada pelas políticas do governo oligarca), chegando ao auge de se criarem campos de concentração para exterminar retirantes. No Ceará, quase 80 mil pessoas que fugiam da seca no sertão foram presas para serem impedidas de chegarem à Fortaleza e então migrarem para o Sudeste. Em 2025, há prefeito no Sul que acha a ideia genial.

Durante a ditadura militar, período onde se passa O Agente Secreto, empresas do Sudeste fizeram a festa. O filme não fala sobre a ditadura propriamente dita, mas mostra bem o que fizeram com nossa região. Para quem não sabe, eu digo: o sucateamento das nossas universidades, a destruição da nossa cultura, o fim de verbas e financiamento, a perseguição de nossos cientistas, artistas, políticos. Os lambe-botas do Sudeste sugaram tudo. Não é à toa que São Paulo e Rio de Janeiro são o “centro cultural” do Brasil. Venceram porque eliminaram a concorrência. Isso tudo dura até hoje, não só no ódio que muitos sulistas e sudestinos tem de nós, mas também no atraso científico das nossas universidades, no sucateamento das nossas cidades, na falta de incentivo da nossa cultura, no preconceito contra nossa produção literária e musical, e, claro, no cinema, tão sem dinheiro e sem visibilidade. Nossos filmes são vistos como nichados, bairristas, regionalistas, o espectador já chega com um pé atrás e aí chovem comparações com filmes cariocas que nada tem a ver “ai mas Ainda Estou Aqui é bem melhor”, “ai mas não entendi as referências”. Por isso Kleber Mendonça Filho foi grandioso: ele conseguiu driblar toda essa barreira e projetou o cinema nordestino internacionalmente. Talvez os espectadores lá de baixo nunca entendam o que nós sentimos: para eles, filmes de grande orçamento rodados no Rio e em São Paulo é natural. Nós nunca tínhamos visto um filme de época com uma produção tão grande representando uma de nossas cidades.

Para o Recifense, é de arrepiar. Paulistas e cariosas provavelmente nem sintam mais isso, esse assombro e deslumbramento de ver a nossa cidade na telona, as ruas que transitamos, a padaria onde compramos pão, o cinema, o carnaval. Que lindo é ver isso tão bem filmado, tão bem produzido, com um roteiro muito inteligente e amarradinho. É por isso que eu digo: se os sudestinos não gostaram, é porque sentiram um distanciamento do filme. E por que sentiram um distanciamento? Talvez porque a xenofobia faz eles se sentirem um povo à parte de nós. Que inconscientemente, acham que o nosso “atraso” nunca vai deixar que nos igualemos a eles.

Em uma resenha para a Revista Piauí, o diretor de cinema paulista Eduardo Escorel prova meu ponto. Ele começa o texto afirmando que há detalhes em O Agente Secreto “que só capta quem viveu no Recife há cinquenta anos”. Depois, diz sem vergonha nenhuma desconhecer referências como a Perna Cabeluda e, pior, Chico Science. Uma visão pequena clássica de quem vive no centro do mundo. Nós aqui em cima vivemos bombardeados com referências obscuras do Rio de Janeiro e de São Paulo, e podemos dizer na ponta da língua bairros dessas cidades, por exemplo. Sabemos os nomes de seus governadores, de estações de metrô, gírias, sotaques. Isso está em quase todo filme, e em todas as novelas. Vocês saberiam nomear bairros de Recife? De Fortaleza? E de Manaus? Não entender referências recifenses em O Agente Secreto é um problema do filme ou ignorância do espectador? É aquele afastamento que falei lá em cima. Isso me lembra quando suscitei uma polêmica na época da Bienal de Pernambuco, apontando que sudestinos davam pouca importância para os nossos eventos e vários comentários eram do tipo “por que eu me importaria com bienais fora do Sudeste? Aqui é o centro do Brasil”. Isso me lembra estadunidenses sem conseguir apontar nomes de países no mapa mundi.

Outra parte que me chamou atenção na resenha de Escorel foi a crítica ao vilão, Ghirotti, que ele diz ser um personagem raso, pobre, sem densidade. Eu não podia discordar mais. Enquanto muitos se questionam, eu afirmo: ele é O agente secreto. O agente secreto é o sudestino. O lambe-botas que mencionei no início desse texto, o sanguessuga que minou o Nordeste com respaldo político e militar. Eu venho de um ambiente acadêmico, faço pesquisa científica desde 2011, e essa parte do filme foi quase pessoal para mim. Além disso, trabalho com produção cultural. Eu sei que esse personagem é real. Ele existe, e muito. Eu já vi pesquisadores sendo boicotados, pesquisas sendo encerradas, patentes roubadas, verbas cortadas, o progresso nordestino sendo esquematicamente podado para que o dinheiro continue em São Paulo. Isso acontece hoje em dia e isso aconteceu na década de 70. Achar Ghirotti um personagem raso é uma prova de ignorância. É uma prova do desconhecimento acerca da história do Brasil, do Nordeste. E mesmo se fosse vazio, é uma caricatura do sudestino. Quantas vezes já não vimos uma caricatura do nordestino no audiovisual brasileiro?

Kleber Mendonça Filho sabia bem o que estava fazendo. Nada está ali por acaso. A prova é a cena em que é mostrada, no final, a manchete de um jornal, que fala que “sulistas” foram assassinados. Os tais “sulistas” sendo sudestinos, uma clássica confusão reducionista de sudestinos que tratam os estados do Nordeste como se fossem uma coisa só.

Por fim, se forem criticar O Agente Secreto, critiquem longe de mim. E sempre se perguntem “estou criticando o filme a partir do meu desconhecimento acerca da história do Nordeste?”. Se a resposta for sim, pare e vá estudar.

mudando de assunto ✷✷

Para quem não sabe, acabei de lançar um livro. Encontros efêmeros é uma novela ilustrada de fantasia urbana que estou publicando de forma independente, por meio da Lei de Incentivo à Cultura PNAB, edital da Prefeitura do Recife.

Na história, um barqueiro transporta seres mitológicos refugiados de um mundo que perdeu a magia, navegando pelo Capibaribe. Entre rios, pontes e overdrives, testemunhamos o colapso do mundo dos humanos. O Remador se pergunta: Recife sobreviverá sem seu encanto?

O livro está em pré-venda com desconto até dia 21/11 e pode ser comprado no meu site. O evento de lançamento em Recife será sábado dia 22/11 às 14h no MAMAM (Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, na Rua da Aurora). Esse livro é bem especial para mim, não só porque é uma das minhas histórias favoritas, mas também porque ele foi ilustrado pelo meu marido, Ícaro Galvão, que fotografou o rio Capibaribe e suas margens urbanas, e imprimiu as fotos em cianotipia, um processo histórico de revelação fotográfica (esse processo vou deixar para falar mais em outra edição dessa newsletter, aguardem!). Quem puder ir, não perca!

 

✷ até o próximo risco!

oi! sou lucas santana — escritore, biólogue e paraibane vivendo em recife. exploro minhas vivências como pessoa queer, não-binária e moradora de uma cidade nordestina cortada por manguezais para escrever sobre o horror e o fantástico que atravessam meu cotidiano. gosto de histórias de investigação, de assombração, de revolta e de vingança. escrevi os livros sangue raro (naci), o silêncio do mangue (naci), a trama da morte (corvus) e bruxa de areia (independente). publiquei contos nas revistas suprassuma (suma), pulpa (escambau) e the dark, e nas antologias lgbterror (diário macabro) e rocket pages (rocket). de forma independente, publiquei o romance ilhados e os contos o parque e fruto podre, finalista do VIII prêmio ABERST. Vocês podem me encontrar no instagram, threads, tiktok ou pedalando pelas ruas do centro de recife.