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09 ⁕ entre o mangue e o sangue

territórios na literatura de horror

o cheiro de lama ⁕

há um cheiro pungente no manguezal. O cheiro da lama, rica em matéria orgânica, é vivo, não dá para ignorar, ele gruda na pele, úmido, pesado, ele puxa a gente para baixo e pede atenção. A lama quer nos levar para ela: quer nos decompor, nos arrastar para debaixo da terra, se alimentar do que anda. Mas no mangue não se anda, se arrasta. Sobre a lama que afunda, a vida é rasteira no manguezal.

mariscos, cracas, guaiamuns, garças. Entrelaçada nas raízes aéreas que se contorcem como guardiões de mil braços, a biodiversidade é cor em meio à natureza morta. É exuberância no meio de decomposição. O mesmo calor e umidade que fazem apodrecer, também faz crescer. O mangue é uma metáfora daquilo que insiste, mesmo na podridão, mesmo na morte lenta.

e quando o território deixa de ser cenário e se torna personagem, o mangue vira boca que mastiga lenta e sem dentes.

mangue-fantasma ⁕

eu gosto quando o território não é cenário, um fundo imóvel diante do qual os personagens se movem. Para mim, o território é um corpo vivo, é testemunha, assassino, vítima. O mangue, que pulsa, que apodrece, que se defende, que nasce, que morre, que mata e sangra, não tem como ser apenas cenário, já que ele é um agente de ação. Um personagem.

falar em territórios vivos é entender que a terra, o mangue, o rio, a beira de estrada, a favela, o loteamento abandonado, a casa inacabada, o prédio condenado, o terreno baldio, têm história. Há nervos nas paisagens, há corrente sanguínea, há memória. Paisagens antropizadas são locais que foram violados, expulsos, ocupados, e depois esquecidos. E que, por isso, carregam uma dor latente, que às vezes se manifesta de forma fantasmagórica. O que é um fantasma senão uma memória do território vivo?

no horror, esse território cheio de memorias vira assombro. A lama que se move e afunda, o mangue que engole, a terra que devora, a casa que sussurra e esconde. Na literatura, pegamos essas memórias e produzimos narrativas em que o lugar tem voz (uma voz que geme, grita, acusa, se vinga).

então, quando escrevo sobre o mangue, não estou falando apenas do ecossistema, mas falo da memória guardada debaixo da lama. O mangue guarda restos: de gente, de bicho, de história. Ele fede porque fermenta. Por isso Recife fede: esse é o cheiro que escapa do que a cidade tentou enterrar. Recife foi erguida sobre aterros e mais aterros do mangue e dos rios, então há um horror que nasce desse apodrecimento lento das coisas mal resolvidas debaixo do asfalto. Aí eu tento escrever, e escrever é como pisar, se sujar, sentir a pulsação do lugar. É enfiar a mão na lama e, ao tirá-la, perceber que ela saiu vermelha.

corpo-território ⁕

espaços não são neutros. Cada rua, cada pedaço de chão, cada casa inacabada carrega uma camada invisível de história, presença, trauma. O território, assim como o corpo, guarda tudo o que foi inscrito nele: violências, deslocamentos, rituais, afetos, silêncios. Ele lembra, mesmo quando a cidade quer esquecer.

na literatura de horror, o que foi esquecido retorna como espectro. O que foi soterrado, insiste em emergir. A maré, quando baixa, revela os segredos escondidos pela água turva do manguezal.

manguezais são territórios marcados por conflito e destruição. Dizimados pelo avanço das cidades do litoral, foram aterrados, cercados, levados à margem. Quando pensamos quais corpos também sofreram esse processo de colonização, fica fácil perceber o mangue é tão fértil para narrativas assombradas. Porque ali, mais do que em qualquer outro lugar, o solo ainda sangra.

mas o corpo é também território, ele sente, lembra, guarda em si as marcas do que o espaço impôs. Corpos dissidentes (queer, racializados, empobrecidos) são como terrenos invadidos: violados, disputados, vigiados, mas também férteis, vibrantes, insurgentes. Assim como o mangue abriga vida em meio à decomposição, o corpo que escapa das normas carrega dentro de si histórias que resistem. Feridas que não cicatrizaram. Inflamações. Desejos que ainda não tiveram nome. E quando o horror entra em cena, ele atua como lente, como bisturi, como escape. Ele revela a podridão não do corpo em si, mas do sistema que o quer doente, calado, exilado do mundo.

aqui em recife, a manguetown, o mangue é território em disputa. Entre a lama e o caos, a vida tenta resistir. O mangue, que serve à pesca e ao sustento, é também quintal de quem mora em palafita, a margem da margem. Ao mesmo tempo, esse espaço para onde foram empurrados os esquecidos pelo poder público, é alvo de cercas, loteamentos, promessas de “revitalização” que chegam com retroescavadeira e contrato na mão.

a especulação imobiliária cerca o mangue como quem cerra uma garganta. Fecha passagem, apaga caminho, constrói em cima da memória. E ainda o mangue respira na água cheia de lixo e esgoto. Sim, o mangue é assombrado, mas não pelo que brota da lama, pelo que se entrelaça nas raízes contorcidas. O que assombra é o que o mangue lembra: quem ele nutriu, quem foi expulso, quem lucra com a sua destruição.

escrever sobre o mangue foi uma forma que encontrei de escavar esses espaços. De tocar na ferida aberta. De permitir que o território sangre, de drenar o pus. De encontrar palavras, rastros, cheiros, ossos. Meus livros são sujos de lama.

⁕ até o próximo risco!

⁕ oi! sou lucas santana — escritore, biólogue e paraibane vivendo em recife. exploro minhas vivências como pessoa queer, não-binária e moradora de uma cidade nordestina cortada por manguezais para escrever sobre o horror e o fantástico que atravessam meu cotidiano. gosto de histórias de investigação, de assombração, de revolta e de vingança. escrevi os livros sangue raro (naci), o silêncio do mangue (naci) e a trama da morte (corvus). publiquei contos nas revistas suprassuma (suma), pulpa (escambau) e the dark, e nas antologias lgbterror (diário macabro) e rocket pages (rocket). de forma independente, publiquei o romance ilhados e os contos o parque e fruto podre, semifinalista do VIII prêmio ABERST. Vocês podem me encontrar no instagram, bluesky, tiktok ou pedalando pelas ruas do centro de recife.