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07 ⁕ noir com glitter
o noir queer em O silêncio do mangue

sobre ⁕
primeiro queria dizer que esse post é recliclado da minha antiga newsletter, hospedada em outro site, e trouxe pra cá porque muita gente que lê O silêncio do mangue fica interessada pelo assunto. Não fiz muitas modificações.
o noir ⁕
antes de falar do queer, preciso falar sobre o noir, que é um subgênero de filme policial. Ele começou a ser difundido perto do final da segunda guerra, entre os anos 40 e 50, nos Estragos Unidos, e derivou-se de livros de suspense da época, influenciado pelo expressionismo alemão e o clima desesperançoso pós-guerra. A Grande Depressão (período de recessão econômica no final da década de 20) teve um grande impacto na composição do noir, também, bem como a estética de filmes de terror daqueles anos (como Nosferatu).
com tanta desgraça acontecendo ao redor, os autores encheram seus filmes de pessimismo e fatalismo, sentimentos onipresentes no gênero. Assim, as tramas policiais são carregadas de dilemas morais, crise existencial, drama, morte, mentira.
o passado (ou o medo dele) é imperativo: nessas histórias havia sempre um passado sombrio a ser evitado, mas que uma hora teria que ser confrontado. Os personagens eram sempre perseguidos por esses traumas pregressos, então eram pessoas bastante obscuras e assombradas. Amaldiçoadas, até.
a estética do noir é um componente elementar da narrativa. Ela serve para ressaltar todos esses sentimentos, como se fosse um personagem em si. Close-ups intensos e lentos, chiaroscuro (claro/escuro, aquele jogo de luz e sombra que destaca a silhueta das pessoas e os contornos dos objetos em contraste com o fundo), ângulos, sombras de venezianas sobre o rosto de um ator enquanto ele olha através da janela.
os ângulos também servem para ressaltar todo o drama do noir. Ângulos de baixo aumentam as sombras e alongam as pessoas, ocultando o chão e expondo o teto (dando a sensação de claustrofobia, enclausuramento, ansiedade), ângulos altos em lugares impossíveis dão a sensação de instabilidade (vertigem, desequilíbrio, o desespero de se estar à beira do precipício). Há uma ânsia pelo escape. Para fugir daquilo tudo. Cidades grandes, de prédios altos e becos escuros e estreitos são o cenário perfeito.
a névoa, o lixo, o colapso do capitalismo, a tristeza da guerra são pano de fundo para as tramas. Quando pensamos em filmes noir, pensamos em Nova Iorque, Los Angeles, São Francisco, Londres.
a narrativa noir ⁕
as narrativas mais comuns nesse tipo de filme são histórias de detetives, de assaltos, de gangues. Há sempre uma morte, geralmente assassinato, e na subtrama se difunde o ciúme, a corrupção, a vingança, a espionagem. Os clichês são bastante reproduzidos, como o clássico personagem de detetive de poucas palavras, o policial valentão, o marido alcoolista e violento, a mulher femme fatale, sempre sedutora e com um cigarro na mão. Alguns diretores utilizaram esses elementos para falar sobre corrupção policial e política, injustiça, problemas sociais e sobre a hipocrisia de uma sociedade decadente.
a maior parte desses filmes, entretanto, está presa a narrativas estadunidenses e europeias, com uma perspectiva imperialista e colonialista. Tudo isso numa perspectiva cisheteronormativa, bastante masculina e misógina.
outros noir ⁕
com o passar das décadas, o noir foi se modificando e adaptando, passando pelas cores, incorporando novas técnicas e influenciando outros gêneros. Há influência no noir no cinema asiático, na literatura, e em seriados de TV atuais.
o cyberpunk (subgênero da ficção científica), por exemplo, bebeu bastante do noir para compor sua estética (como em Akira, Blade Runner, O Quinto Elemento e Altered Carbon).
o noir feito hoje em dia, com filmes e séries de mistério (muitos deles adaptações de livros) que fazem bastante sucesso, é chamado de neo-noir (exemplos: Garota Exemplar, A Garota no Trem, True Detective, Bom Dia Verônica)
ainda assim, com tantos exemplos, nenhum desses citados é um filme queer. Que coisa, né? São poucos representantes mesmo, e mesmo com todas as modificações do gênero noir, as narrativas cisheteronormativas imperam até hoje (com histórias sobre relacionamentos entre homem e mulher cis, dificilmente saindo da discussão sobre violência doméstica), aliás, os diretores e autores são, em sua grande maioria, homens cis e brancos.
enfim, o queer ⁕
queer é subversão e o noir queer subverte o gênero, quebrando esses paradigmas que reforçam o status-quo que vem lá do norte global. Como sempre, queer é contravenção da norma, então os arquétipos do detetive muito masculino e da mulher femme-fatale são apropriados e destruídos. A arte queer desafia construções sociais que marginalizam as identidades que fogem da regra, transformando o que é visto como "estranho" em símbolo de liberdade. Aí pessoas LGBTQIA+ assumem o protagonismo. São vilões, mocinhas, investigadoras, criminosas, vítimas e assassinas. Faca no Coração, Femme, Medusa Deluxe, Verão Fantasma são exemplos de filmes assim.
O silêncio do mangue é um clássico livro noir: protagonista detetive de poucas palavras, cujo arco envolve confrontar o próprio passado, narrativa fatalista e pessimista, muitas sombras e pessoas espiando pela janela. Só que é queer.
o queer no noir trata de vivências queer. De revolução, gritos suprimidos, desejo de vingança. Judith Buttler diz que as normas e performatividades cis-heteronormativas foram escritas nos nossos corpos como se fossem verdades biológicas, e que qualquer desvio disso é tido como perversão da natureza. Os corpos de pessoas queer, ou seja, corpos dissidentes, que não se enquadram nessas normas, são monstrificados para que sejam combatidos. Então, se somos uma ameaça tão grande ao sistema que nos persegue e nos condena (o capitalismo, colonialismo, patriarcado e neoliberalismo), a arte queer abraça o estranho e assume a marginalidade. Em O silêncio do mangue todos os personagens são queer, desde gays empinando moto a travestis explodindo coquetéis molotov na delegacia. Todos os personagens são queer como uma própria subversão ao gênero policial, e o crime tabém envolve a comunidade queer.
além disso, na história, bem longe de Nova York, drag queens caminham pelas ruas escuras e úmidas de uma cidade nordestina cercada por manguezais. É um noir queer tropical.
é importante lembrar que não se trata apenas de representatividade. Não é colocar um personagem LGBTQIA+ aqui e ali e chamar de história queer. São pessoas queer assumindo suas próprias narrativas. São os vilões, os mocinhos, os monstros, os salvadores, os algozes, as vítimas. Afinal, queer não é apenas um traço de personalidade, mas algo que perpassa todos os aspectos da nossa vida.
dito isso, feliz mês do orgulho LGBTQIAP+! Leiam queer estejam proibidos de serem heterocis.
agenda ⁕⁕
esse mês estarei pela primeira vez na Bienal do Livro do Rio de Janeiro! Dia 16/06 (segunda-feira) participarei de uma mesa no Skeelo Talks, “Góticos & trevosos”, ao lado das autoras Gih Alves e Amanda Orlando, com mediação de Rodrigo de Lorenzi, o moço do vinho. Apareçam e levem meus livros para autografar!
fora isso, ao longo dos dias 15 e 16, estarei perambulando pela Bienal ou autografando no stand da Taverna do Rei, onde vai ter livros da Editora Naci à venda.
⁕ até o próximo risco!

⁕ oi! sou lucas santana — escritore, biólogue e paraibane vivendo em recife. exploro minhas vivências como pessoa queer, não-binária e moradora de uma cidade nordestina cortada por manguezais para escrever sobre o horror e o fantástico que atravessam meu cotidiano. gosto de histórias de investigação, de assombração, de revolta e de vingança. escrevi os livros sangue raro (naci), o silêncio do mangue (naci), a trama da morte e fruto podre. publiquei contos nas revistas suprassuma (suma), pulpa (escambau) e the dark, e nas antologias lgbterror (diário macabro) e rocket pages (rocket). de forma independente, publiquei o romance ilhados e o conto o parque. Vocês podem me encontrar no instagram, bluesky, tiktok ou pedalando pelas ruas do centro de recife.