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03 ⁕ a ameaça queer
a arte profana e terrorista dos corpos queer
carta aberta aos monstros, mutantes e aberrações ⁕
“o corpo como arma. A palavra como gatilho”.
já que é halloween, mês das bruxas, queria propor uma coisa: sejamos monstros. Deixemos a humanidade para trás e vivamos como mutantes e aberrações.
na edição do risco da semana passada, falei como pessoas queer se apropriaram da figura do monstro para falar sobre si mesmas na literatura e no audiovisual. Mas e se a gente se apropriar do monstro na vida real?
ora, gênero é construção social. É uma perfomance que nos é imposta pelo sistema desde que somos bebês. Aliás, desde antes da gente nascer, quando nossos pais escolhem nosso nome e cores do enxoval. Gênero é discurso, são códigos, regras, conduta, cultura. Precisamos nos adequar a esse manual e reforçar o tempo inteiro características designadas para o gênero que nos foi imposto. E ai de quem não seguir as regras!
nós somos indivíduos colonizados. Nosso corpo é território controlado, domado. Ao invadir territórios, os europeus fizeram de tudo para desnaturalizar os corpos e comportamentos que divergiam dos deles. Disseram que eram monstruosidades, inferiores, devassos, passíveis de genocídio e escravidão. Essa estratégia colonial de dominação perdura até hoje (invadindo não só nossos corpos, mas todas as esferas da nossa vida — estética, alimentação, arquitetura, saúde e afins).
no mundo eurocentrado, não há espaço para diversidade. Como disse Judith Buttler, essas normas e performatividades foram escritas nos nossos corpos como verdades biológicas. Ser branco é natural. Sexo entre homem e mulher é natural (mas apenas o sexo com penetração, viu, onde o homem domina e a mulher engravida). Ser cisgênero e heterossexual é natural. Está escrito na biologia, e qualquer desvio disso é perversão da natureza. É erro. Logo, deve ser abominado e corrigido.
a performance cis e heterocentrada é fundamental para o capitalismo, pois gera famílias e trabalhadores passíveis de serem explorados. Por isso, corpos são meros objetos que geram lucro (vale lembrar que não só corpos humanos, mas animais não-humanos também).
os corpos dissidentes, que não se enquadram nesse núcleo familiar lucrativo, são monstrificados para que sejam combatidos. Não só isso: é criado um bode expiatório. Se o núcleo familiar está abalado, não é por conta da exploração capitalista e das péssimas condições de vida gerados por esse sistema destruidor, e sim dos monstros que ameaçam a “normalidade”/”estabilidade”.
então se somos uma ameaça tão grande ao capitalismo (ao colonialismo, ao patriarcado e ao neoliberalismo), então quero ser, sim, monstro!
a ameaça queer ⁕
por mais que, às vezes, sejamos assimilados pelo capitalismo quando é conveniente ao lucro (pink money), sempre seremos vistos como seres à margem. Queer significa estranho desde a origem da palavra. Alguns de nós conseguem se disfarçar e acessar certos locais proibidos à maioria. É a falácia do capitalismo que diz que se nos esforçarmos o bastante e seguirmos as regras, chegaremos ao topo. É mentira porque não há espaço suficiente no topo. O topo só existe quando há muitos explorados lá embaixo.
lá no topo você sempre será um monstro disfarçado, um corpo em risco, um corpo estranho, andando na corda bamba. Já que nos apropriamos da palavra queer (e de tantas outras: sapatão, viado, etc), por que não nos apropriar do estranho também?
é difícil seguir regras. Exaustivo. Frustrante. A perfomance de gênero precisa de cuidados diários/rituais que as pessoas cis fazem para reforçarem suas expressões (fazer as unhas, depilar as pernas, deixar a barba crescer, falar grosso, preencher os lábios, harmonizar o rosto). É justamente essa binariedade do gênero masculino/feminino que reforça como é tudo artificial e perfomático, criado e institucionalizado, e as pessoas cis sequer percebem isso. E quem não segue esse ritual é hostilizado.
Tertuliana Lustosa comparou, no Manifesto Traveco-comunista, corpos dissidentes com o monolito em 2001: A odisseia no espaço. No filme, os macacos se assustam com o objeto estranho e reagem com violência.
por isso eu amo tanto a arte drag. Enquanto dizem que drag queens reforçam estereótipos de gênero femininos, eu afirmo o contrário: drags escancaram o quanto tudo é perfomance.
“a drag-queen repete e subverte o feminino, utilizando e salientando os códigos culturais que marcam esse gênero. Ao jogar e brincar com esses códigos, ao exagerá-Ios e exaltá-Ios, ela leva a perceber sua não-naturalidade; Sua figura estranha e insólita ajuda a lembrar que as formas como nos apresentamos como sujeitos de gênero e de sexualidade são inventadas e sancionadas pelas circunstâncias culturais em que vivemos”.
terroristas ⁕
queer é terrorismo, então. Mostramos o dedo ao capital e deixamos escancarado como tudo é expressão e construção. O artista e pesquisador recifense Mitsy Queiroz diz que “fracassar também é um ato de resistência política”, e a vivência queer reside no erro. Somos um erro da natureza, uma falha, e não faz sentindo seguirmos regras que sempre irão nos colocar no lugar do erro. Então só nos resta isso: abolir as normas, ser falha, crime, monstro. Estão com medo da linguagem neutra? Que saiam correndo!
ser queer dá liberdade ao corpo, sem regras podemos explorar e ir até limites que vão além da humanidade. Modificações corporais, alienígenas, ciborgues, fetiches, desobediência.
“meu interesse hoje é ratificar minha identidade monstruosa. Deixar meu corpo monstro subverter os desejos do mundo e articular-se como luz no fim do túnel da cisgeneridade e, quem sabe, da própria transgeneridade. Pisotear a farsa da identidade estática—fazer as pazes com a existência em trânsito”.
gosto muito como a arte explora os limites (ou não-limites) do ser queer. A arte é extensão do corpo e da mente. É expressão, também, assim como gênero. Dessa forma, o “queer” também é extrapolado para o fazer artístico. Toda a obra do cineasta David Cronenberg é uma ótima referência do queer monstruoso. Em Crash, pessoas sentem tesão em acidentes de carro. Em Videodrome, um experimento de controle social usa pornografia e violência para causar mutações corporais. Em Crimes do Futuro, a humanidade é quase sintética, não sente mais dor e as pessoas são viciadas em modificações corporais e cirurgias. Também sou obcecade por Titane, para mim o ápice de cinema queer. O filme, da diretora Julia Ducournau, acompanha uma mulher que tem fetiche em fazer sexo com carros. Na literatura, gosto muito de The Sluts, o livro de Dennis Cooper onde uma comunidade online fica obcecada por um garoto de programa que tem fetiche em violência extrema e mutilação. O incrível da arte queer é isso: a possibilidade de sair da norma e explorar o absurdo.
como queers (e artistas) nós precisamos parar de ter medo da falha. Do desejo, da raiva, da livre expressão, da transgressão, da blasfêmia. Já estamos fora da regra, então que usemos o grotesco para profanar e destruir o cistema.
E se você não aceitar, pode doer, pode machucar
Que eu nem lamento
guerrilha queer em recife ⁕⁕
passando para convidar quem estiver em Recife para o lançamento do meu livro O silêncio do mangue, nessa sexta-feira (18/10) às 18h na Livraria do Jardim! O evento contará com uma conversa mediada por Apolo Andrade, e uma sessão de autógrafos. O livro estará sendo vendido lá na livraria, mas também pode ser comprado na amazon. Se tu não tiver o livro, não tem problema, aparece pra me dar um abraço. Te vejo por lá? 💃🏽
publicado pela Editora Naci, O silêncio do mangue é ambientado em uma cidade fictícia inspirada em Recife. A trama acompanha o investigador Tibério Ferreira, que se vê envolvido na investigação da morte de uma famosa drag queen, encontrada sem vida nas águas turvas do manguezal. Conforme outros corpos são descobertos, uma guerrilha queer intitulada “Gayrrilha” surge, buscando justiça contra a violência enfrentada pela comunidade LGBTQIAPN+. É neste contexto que Tibério é arrastado para uma rede de segredos e perigos cada vez mais profundos.
data: 18 de outubro de 2024 (sexta-feira)
horário: 18h às 20h
local: Livraria do Jardim (Av. Manoel Borba, 292, Boa Vista - Recife)
entrada: gratuita
⁕ até o próximo risco!
⁕ oi! sou lucas santana — escritor, biólogo e paraibano vivendo em recife. exploro minhas vivências como pessoa queer, não-binária e moradora de uma cidade nordestina cortada por manguezais para escrever sobre o horror e o fantástico que atravessam meu cotidiano. gosto de histórias de investigação, de assombração, de revolta e de vingança. escrevi os livros o silêncio do mangue (naci), a trama da morte e fruto podre (corvus). publiquei contos nas revistas suprassuma (suma), pulpa (escambau) e the dark, e nas antologias lgbterror (diário macabro) e rocket pages (rocket). de forma independente, publiquei o romance ilhados e o conto o parque. Vocês podem me encontrar no instagram, bluesky, tiktok ou pedalando pelas ruas do centro de recife.