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02 ⁕ horror queer

abraçando o monstro que habita em nós

esse texto foi originalmente publicado na minha antiga newsletter. Como é mês do halloween, decidi repostar aqui, mas com algumas alterações.

mestres do disfarce ⁕

ser uma pessoa LGBTQIA+ é um fato que atravessa nossas vidas de muitas maneiras. Começamos muito cedo a entender nosso lugar num ambiente opressor. É uma pressão que vem de todos os lados. De todos os olhos. É assim que começamos a mentir desde cedo. A fingir, a ocultar, a guardar, a disfarçar. Somos mestres do disfarce. A gente cresce tentando se encaixar num espaço que não nos cabe. E assim a gente vai se moldando, adaptando, podando. Sobre nossas costas vai crescendo uma carga: de autocobrança, de baixa autoestima, de desconfiança, de medo. Temos medo de sermos pegos. De não sermos perfeitos. Pois no nosso mundo quem não é perfeito é pego e é morto. É assim na realidade e também na ficção. Por fora, somos uma coisa. Por dentro, vai se criando algo. Um monstro?

eu cresci vendo personagens LGBTQIA+ morrendo e sofrendo nos cinemas e na televisão, por serem o que são. E assim é plantada no nosso subconsciente a ideia de que para sobrevivermos precisamos ser perfeitos em todos os campos da nossa vida: na escola, na universidade, no trabalho, nos relacionamentos. Precisamos ser bonitos, ter o corpo perfeito, simpáticos, engraçados, o menos gay possível, o mais heterocis possível. Adestrar o monstro.

no capitalismo (e neoliberalismo) o sucesso é imperativo. Dizem que se a gente se esforçar e trabalhar suficiente, chegaremos no topo (spoiler: é mentira). Até vemos uma pessoa de alguma minoria social no topo gritando lá de cima pra gente: vai, trabalha mais, talvez você também chegue aqui! Talvez achem que você também é normal.

gays perfeitos ⁕

é tendência na literatura (principalmente a jovem) a representação de personagens LGBTQIA+ perfeitos e felizes. Casais gays apaixonados e fofos, na literatura e na TV, especialmente homens cis e brancos (sim, Hearstopper, estou falando de você). Entendo o apelo. Afinal, já vimos desgraças demais e queremos apenas alienação, né? Sentar no sofá e sorrir com aqueles meninos no mundo da fantasia.

o problema é que essa tendência criou uma pressão para que personagens LGBTQIA+ sejam incorruptíveis. Com direito a ataques do público caso algum personagem ouse cometer um erro. E isso é reflexo das exigências da sociedade sobre nós. Nas novelas, os personagens gays mais aceitos praticamente não são gays, são simulacros da cisheteronormatividade. Se não formos perfeitos (aos olhos dos outros), não merecemos lugar na tela. Ninguém vai querer nos ver. Morreremos. Cortem a cena de sexo! Cortem a cena de beijo! Cortem a cena de abraço! Cortem! Queimem os monstros!

“nós merecemos que nossas transgressões sejam representadas tanto quanto nosso heroísmo, porque, quando negamos a um grupo de pessoas a possibilidade da transgressão, estamos lhe negando a humanidade. Em outras palavras, indivíduos queer — os da vida real — não merecem representação, proteção e direitos por serem moralmente puros ou respeitáveis como grupo. Merecem tais coisas porque são seres humanos, e isso basta.”

Carmem Maria Machado, no livro Na casa dos sonhos.

gays no topo ⁕

quando nossas transgressões são apagadas, cria-se um imaginário higienizado da nossa vida. Voltamos àquele discurso sobre precisarmos ser perfeitos o tempo todo para sermos aceitos. Quem nunca ouviu gente criticando Parada LGBTQIA+ por ela repelir a família tradicional brasileira? O que querem dizer é: podem ser LGBTQIA+, mas não demais. Não muito afastado do padrão da família cisheteronormativa. Pode comemorar a diversidade sim, mas só em Junho. E não muito. Se você obedecer as normas, se disfarçar e for parecido conosco o suficiente, talvez tenha sucesso. Nada de afeminados. Nada de caminhoneiras. Sem linguagem neutra também, muito menos pessoas trans. A linguagem neutra, aliás, virou um verdadeiro monstro digno da mais assombrosa história de horror, perseguindo e aterrorizando até gente que se diz de esquerda progressista.

mas trabalhe e se esforce e você conseguirá a vida dos sonhos, muito dinheiro, frequentar restaurantes caros, lojas de grife, ter o corpo perfeito, ser aceito em todos os ambientes, quase como uma pessoa cis-hetero, quase sem sofrer LGBTQIA+fobia. Gays no topo! Claro que para ter alguém no topo, é preciso ter alguém oprimido lá embaixo. A libertação das opressões só existe quando todo mundo estiver livre das amarras.

“não acredito em pretos no topo, em travas no topo ou em traviarcado, porque eu entendo que o topo é muito problemático. Se há um topo instaurado é porque há uma base que o sustenta”.

Linn da Quebrada, na Revista Continente

a monstruosidade queer ⁕

o horror é um gênero narrativo que permite muitas transgressões. Sem limites onde o medo, o nojo, a angústia e aversão podem ir, é um gênero tradicionalmente desobediente e contraventor. Por isso foi abraçado por tantos artistas queer. Por isso histórias de terror escrita por homens brancos e cishetero, principalmente do norte global, em sua maioria são bem sem graça.

o queer (tão repelido e higienizado em outros gêneros) abraçou o horror não para reivindicar espaço, mas para quebrar tudo. Como sabemos, o termo queer é hoje utilizado para denominar pessoas que estão fora ou se opõem ao status quo, ou seja, que não se encaixam na cisheterossexualidade e binaridade de gênero. Um dia, já significou estranho, esquisito, bizarro e grotesco. Enquanto a mídia hegemônica prega a higienização das nossas vivências, o horror queer diz para a gente abraçar o esquisito, reivindicar o monstro, assumir esse nosso não pertencimento.

nos chamam tanto de monstros, então vamos ser! Vamos encarar nossa própria monstruosidade e falar sobre nossas dores, traumas, raivas.

no horror queer, tudo que atravessa as nossas vidas como pessoas LGBTQIA+ pode ser utilizado como um elemento de horror numa narrativa de ficção. Body horror, slasher, invocação, possessão demoníaca, thriller, todos esses elementos do horror e terror se interseccionam com a vivência queer: a rejeição da sociedade aos nossos corpos, o medo de andar na rua, a culpa cristã, a violência, a suspensão de direitos, o pânico das ISTs, a subversão, a conversão.

a identidade queer está atrelada ao gênero horror há muitas décadas, como nos filmes Hellraiser (1987, Clive Barker), A Hora do Pesadelo 2 (1985, Wes Craven), Festim Diabólico (1948, Hitchcock) e na literatura, como em Drácula (1897, Bram Stoker) e Frankenstein (1818, Mary Shelley), mas sempre esteve presente apenas no subtexto — afinal autores e diretores eram obrigados a disfarçar a identidade queer na narrativa — e, muito frequentemente, resumida aos vilões, nos monstros, na ameaça para o mundo cis-heteronormativo. Claro que Mary Shelley e Bram Stoker estavam bem longe de conhecer o termo queer (e vai saber o que os outros diretores estavam realmente pensando), mas esses exemplos citados são passíveis de várias interpretações de acordo com o contexto (e o meu contexto é queer!).

foi em produções de horror mais recentes que as pessoas queer tomaram conta de suas próprias narrativas para contar as histórias que quisessem, com a liberdade de subverter o sistema sem amarras, abraçando o estranho e o imperfeito. Passamos a não ser só vilões, mas a ser tudo. Escrito por pessoas queer, falando sobre vivências queer e com personagens queer, esse gênero quebra as normas, explora possibilidades, desobedece classificações e não se preocupa em agradar a sociedade normativa.

por exemplo, no curta Varadouro, de Marcelo Oliveira e William Oliveira, um jovem é assombrado por um fantasma da família durante um encontro sexual; em The Sluts, livro de Dennis Cooper, um garoto de programa tem fetiche em ter seus membros decepados; no filme Faca no Coração (2018), do diretor francês Yann Gonzalez, um serial killer ameaça as gravações de um filme pornô LGBTQIA+. Também francês e também sobre um serial killer, o thriller Um Estranho no Lago (2013) fala sobre sexo e mortes numa área de cruising. Filmes como os de Cronenberg ou Titane (2021, Julia Ducournau), mostram que queer é mais que sexo entre pessoas, e a monstruosidade do corpo pode ser explorada de muitas formas.

voltando para a literatura, alguns livros me marcaram com cenas espetaculares do mais puro horror queer. Iah: fatos e assombrações, de Matheus Monteiro, discute sobre violência homofóbica usando como pano de fundo uma cidade assombrada por uma maldição; Nossa parte de noite, da argentina Mariana Enriquez, que conta a história de pai e filho que atravessam a Argentina na época da ditadura e de uma sociedade secreta que cultua um Deus de sombras; Temporada de furacões, de Fernanda Melchor, que conta a história de uma bruxa encontrada morta em um canavial no interior do México. LGBTerror é uma antologia da editora Diário Macabro que reuniu 16 contos de horror queer de autores diversos — incluindo um meu, A monstra, onde usei a figura de um monstro feito de pedaços humanos para falar de transgeneridade.

abraçar o estranho que habita em nós e subverter normas é libertador. Um mundo cheio de possibilidades se abre. Eu, particularmente, prefiro causar medo do que sentir medo. E vocês?

“queer é tudo isso, é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade desviante, homossexuais ,bissexuais, transexuais, travestis, drags… É o excêntrico que não deseja ser integrado e muito menos “tolerado”. É um sujeito de pensar e de ser, que não aspira ao centro nem o quer como referência. Queer é um corpo estranho que incomoda, perturba, provoca e fascina”.

Guacira Lopes, no livro Um Corpo Estranho

encontro assombrado ⁕⁕

a segunda edição do Encontro Assombrado, evento idealizado por Apolo Andrade e por mim, põe em debate "O terror nos tempos atuais: tradição nordestina e representatividade na literatura".

contando com a presença das autorias Lua Costa e Victor Valeffort, nosso encontro acontece no dia 27 de Outubro, às 14h no Café Furdunço (Recife) e promete te apresentar a histórias de tirar o sono.

o evento será gratuito e livre para todos os públicos.

⁕ até o próximo risco!

⁕ oi! sou lucas santana — escritor, biólogo e paraibano vivendo em recife. exploro minhas vivências como pessoa queer, não-binária e moradora de uma cidade nordestina cortada por manguezais para escrever sobre o horror e o fantástico que atravessam meu cotidiano. gosto de histórias de investigação, de assombração, de revolta e de vingança. escrevi os livros o silêncio do mangue (naci), a trama da morte e fruto podre (corvus). publiquei contos nas revistas suprassuma (suma), pulpa (escambau) e the dark, e nas antologias LGBTerror (diário macabro) e rocket pages (rocket). de forma independente, publiquei o romance ilhados e o conto o parque. Vocês podem me encontrar no instagram, bluesky, tiktok ou pedalando pelas ruas do centro de Recife.